sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Sinopse

A mãe de Fausta, grávida de sete meses, deixa o país para ser mais uma exilada na Alemanha. Na viagem, frágil e desesperada, faz um trato com Mefistófeles até para garantir o futuro da filha. Por infausta coincidência, este é o ano que Fausta completa 18 anos, volta ao país e começa a não envelhecer mais. No aeroporto, Mefistófeles é o próprio Cristo de braços abertos para receber Fausta. Ou mais um infeliz: ele cai em tentação por Fausta, que não quer saber de Mefistófeles. Ela ainda acredita no amor antes de virar moeda e alma de troca. Mas ele não desiste: a cada dia o criador faz uma nova tentativa para seduzir sua fausta criatura.

Sobre "Fausta" (Claudio Willer)

Paródia revolucionária, aí está um termo que se aplica, com total propriedade a Fausta. Satiriza, ao mesmo tempo, expressa não apenas admiração, mas amor pela literatura. Reescrever à sua moda o Fausto de Goethe é acrescentar-lhe sentidos.
Fausta  expõe uma poética, conforme a qual poesia é metamorfose. Move um combate cerrado aos princípios da identidade e não-contradição, aos pilares da lógica na tradição ocidental. Tudo pode ser outra coisa.
E todos os registros estão presentes em Fausta. Há lirismo e delicado erotismo. E uma ambiciosa busca de poesia total por Silvio Piresh.
O mais importante é ser uma leitura deliciosa. Além de informar, diverte. Contraposta a certa aridez, a uma atmosfera demasiado rarefeita de obras que se aventuram pelo caminho da literatura sobre literatura.
É texto vivo, pulsante, animado. Em Silvio Piresh, neste e em seus livros anteriores, a ironia dá vida à poesia.

Um Goethe de saias

Fausta é um romance diferente, em quadrinhos, seguido de um longo poema dramático. Talvez uma versão feminina de Fausto, ou apenas um Goethe de sutiã e calcinha. Formato: 16x23 cm. 316 pg.

Claudio Willer: "Diversidade, aí está algo de cuja falta leitores de Silvio Piresh não poderão reclamar. Estreou com Poesia King Size de 1981, um “objeto-poético”: poemas enrolados e acondicionados em carteira de cigarros. Em seguida, H2O Poesia em Conserva, outro objeto: potes de vidro com poemas impressos e mergulhados na água. Para surpresa de quem o via como especialista em novos suportes, lançou em 1983 Orelhas de Van Gogh, livro de poemas com 340 páginas, na ocasião elogiado pela crítica: sua criação demandou o mesmo número de dias que de páginas – escreveu um poema por dia, nenhum deles banal ou prosaico. Retornou aos suportes menos habituais com Poesia Luminosa de 1984, editada e veiculada em painéis luminosos. Mas, desmentindo quem o via como experimentador de novas tecnologias da comunicação, após um interregno reapareceu com VamPires de 1998, produção pré-Gutemberg, 200 livros feitos à mão, artesanais, escritos e transcritos por mais de sete anos, com suas capas pintadas a óleo, uma a uma, e diferentes entre si. Finalmente, a transgressão extrema no conteúdo, com o romance O Cristo Rosa de 2003 (ultrapassada apenas pelo Deus: serial-killer e outras liberdades deste Fausta).

Mostrando que seu fôlego aumenta com o tempo, traz agora uma extensa paródia. Somando-se às publicações anteriores, mostra o que pretende: literatura total, sem limites. Na ampliação de fronteiras, interessa o que não for prosaico, discursivo, nesse ousado empreendimento atestado pela produção ao longo de quase três décadas.


Fausta expõe uma poética, conforme a qual poesia é metamorfose. Move um combate cerrado aos princípios da identidade e não-contradição, aos pilares da lógica na tradição ocidental. Tudo pode ser outra coisa:

– Às vezes, Mefisto. Outras,
Um Midas: tudo se toca &
Se transforma em mim.
O outro deixa de ser outro
Para virar também parte
Onde me reconheço Isto.
A caixa de lápis de cor
Repinta a lembrança.
Feito areia, atraio uma onda
E mais outra e outra mais.
A identidade de cada toque
E de cada ser, essa a digital.
O código braile traduzindo
Seu outro código, calor
E suor e frio e calafrio, da pele
De dentro e do outro lado.

Reparem nas menções a outro: outro lado, outro código. São paráfrases da outra voz, a qualidade poética por excelência conforme o título escolhido por Octavio Paz para um de seus livros:


Entre a revolução e a religião, a poesia é a outra voz. Sua voz é outra porque é a voz das paixões e das visões; é de outro mundo e é deste mundo, é antiga e é de hoje mesmo, antiguidade sem datas. Poesia herética e cismática, poesia inocente e perversa, límpida e viscosa, aérea e subterrânea, poesia da capela e do bar da esquina, poesia ao alcance da mão e sempre de um mais além que está aqui mesmo. Todos os poetas, nesses momentos longos ou curtos, repetidos ou isolados, em que são realmente poetas, ouvem a voz outra. É sua e é alheia, é de ninguém e é de todos. [...] Plenitude e vacuidade, vôo e queda, entusiasmo e melancolia: poesia.


O final do trecho – calor/ E suor e frio e calafrio, da pele/ De dentro e do outro lado – pode ser lido como mais uma paráfrase, desta vez do Baudelaire de Arte Filosófica: O que é a arte pura segundo a concepção moderna? É criar a magia sugestiva que contenha ao mesmo tempo o objeto e o sujeito, o mundo exterior ao artista e o próprio artista. Poesia, onde opostos se encontram: o dentro e o outro lado, o calor e o frio.

A proclamação da analogia, da poética das metamorfoses, reaparece em passagens como esta, com a ousada aliteração salmão-salmos:

– A volta não é o rio da ida
Mesmo sendo o caminho.
A volta à mulher, cheia de voltas.
Linha reta a maior volta.
Taí o eterno retorno, salmão
Contra o tal curso, salmos.
Vida, ida e partida na desova.
O fim está no seu meio.

Uma interpretação: fazer poesia, criar salmos, é navegar contra a correnteza do rio – qual rio? o símbolo do devir, do tempo? – assim como faz o salmão, voltando à fonte para reproduzir-se. Metáfora extrema, erótica e do poeta como salmão.


Todos os registros estão presentes em Fausta. Há lirismo e delicado erotismo:

– Rosa das águas-vivas, sexo
Rosa, lábios buscando outros
Lábios, tímidos e túmidos.
Algum norte, simples sentido.
Mulher, cata-vento íntimo
Esse em todas as direções.
Fincado em mão de moleque
(Hoje mais menino: homem
Em sua pele de menino).
Nessas oficinas de vento
Entre pernas, entre elas.

Mas Silvio Piresh escolheu o poema dramático para, em primeira instância, fazer sátira e paródia (visando a outro poema dramático, o de Goethe). É um procedimento com antecedentes importantes na modernidade, como As Infibraturas do Ipiranga de Mário de Andrade, escrito no calor do modernismo. E, antes dele, uma obra de maior envergadura, a de Sousândrade, especialmente com O Inferno de Wall Street. Aliás, Sousândrade é expressamente citado, como nesta passagem que revela o quanto é ambiciosa a busca de poesia total por Silvio Piresh:

– Sousândrade: Orfeu, Dante e
Enéias ao inferno desceram.
– Fausta: E eu, sem Virgílio.
– Sousândrade: O Inca há de subir.
– Fausta: Aí, eu já não sei. Não sei.
– Sousândrade: E voltava Dante,
Do Inferno de Wall Street...
– Fausta: E eu chegava ao Brasil...
– Souza/Dante: Ogni Sp’ranza
Lasciate, che entrate?
– Fausta: Toda, toda esperança.

Há, ao longo de todo Fausta  uma intrincada rede de comparações: por exemplo, o inferno de Wall Street, aquele de Dante, o nosso.


Depois de haver criticado, em mais de uma ocasião, o hiperteoricismo em estudos literários, penso poder afirmar que um pouco de teoria literária não faz mal algum. Fornece categorias para entender o alcance da criação de Silvio Piresh. Por exemplo, Linda Hutcheon, ao considerar a paródia meta-gênero, um gênero de gêneros, por ser uma reescrita de outra obra, através de sua recontextualização. Portanto, paródia é obra de outras obras. Ainda usando as definições de Hutcheon, o prefixo para significa contra-canto em grego; por isso, tem duplo sentido: de oposição entre dois textos, onde um ridiculariza o outro, e também como sinônimo de ao longo de, assim sugerindo acordo ou intimidade, em vez de contraste; portanto, é diálogo de obras e leituras.


Outra característica importante da paródia é o seu caráter ambivalente. Pode ser, diz Hutcheon, conservadora, animada pela intenção de censurar ou refrear certas inovações mais ou menos polêmicas; ou revolucionária, sempre que rompe, de um modo provocatório e iconoclasta, com regras, modelos ou códigos literários mais ou menos exaustos numa dada época, visando, de um modo preferencial, manifestações literárias de natureza epigonal ou a corrosão das auréolas mitificadoras de certos escritores e suas obras.


Em outros termos, paródia, mesmo aquela do tipo mais corrosivo, destruidora da atitude reverencial frente à obra consagrada, implica seu reconhecimento. Um exemplo, Marcel Duchamp e seu quadro LHOOQ!, reprodução da Mona Lisa de Leonardo da Vinci com o acréscimo de bigodes. De um lado, ridiculariza a obra; de outro, reconhece sua importância. Se não fosse referencial, não haveria motivo para sua modificação.


Paródia revolucionária, aí está um termo que se aplica, com total propriedade a Fausta. Satiriza, ao mesmo tempo, expressa não apenas admiração, mas amor pela literatura. Reescrever à sua moda o Fausto de Goethe é acrescentar-lhe sentidos.


A interpretação simbólica pode oferecer pistas para alguns desses sentidos – isso, deixando claro que as observações a seguir não tentam, necessariamente, traduzir intenções do autor.


Quem é Fausto? De onde veio o protagonista de Goethe? Segundo historiadores da religião, de Simão o Mago (ou Simão o Mágico), filósofo e pregador errante contemporâneo de Jesus Cristo, nascido na Samária, tido como iniciador do gnosticismo. É o mesmo Simão que protagoniza o episódio relatado em Atos dos Apóstolos 8, oferecendo-lhes dinheiro (daí vêm as expressões “simonia” e “simoníaco”). Conforme as Epístolas Clementinas, quis medir forças com São Pedro ao mostrar que podia voar, em um episódio que simbolizou a supremacia do cristianismo sobre a gnose.
Simão o Mago teve como companheira uma prostituta recolhida em um bordel de Tiro, por ele erigida a sacerdotisa e declarada reencarnação de Helena de Tróia, e de Ennoia, princípio feminino criador do mundo. Ao cultuar sua companheira como Helena de Tróia e manifestação do primeiro pensamento de Deus, o mago não apenas praticou sincretismo religioso. Também confundiu escritura sagrada, especulação filosófica e literatura. Fez paródia, pode-se dizer a partir da perspectiva moderna.


Como lembra Mircea Eliade, A lembrança desse casal excêntrico [Simão e sua “Helena”] deu origem à lenda de Fausto, o arquétipo do mágico. Com efeito, Simão era conhecido em Roma como Faustus (“o Favorecido”). De Simão o Mago até os Fausto de Marlowe e Goethe, houve deslocamentos, metamorfoses. Tornou-se arquétipo do pactário, o erudito que negociou com o diabo.


Para Alexandrian, Simão o Mago não foi apenas protagonista de uma renovação religiosa, porém o chefe dos livre-pensadores de seu tempo. Em especial, pela ousadia ao unir-se a uma prostituta, proclamando-a reencarnação de Helena de Tróia e conferindo-lhe estatura de grão-sacerdotisa: Simão fundou assim o feminismo revolucionário e a teologia erótica da Gnose.


Harold Bloom tem observações sagazes sobre o modo como Simão o Mago confundiu e subverteu hierarquias: A sua peculiar mistura de Homero, Virgílio, da Bíblia e da própria Gnose resulta numa liberdade de interpretação revisionária tão ampla que transgride todos os limites e torna-se sua própria criação. O cristianismo atribui má fama a Simão, mas numa época posterior ele seria distinguido como um poeta audacioso, verdadeiramente forte, afinado com Yeats.O mago não apenas praticou sincretismo religioso. Também confundiu escritura sagrada, especulação filosófica e literatura. É um hipersincretismo.


O gnosticismo foi uma religião dualista, porém heterodoxa, não-normativa, dispersa em comunidades, que competiu diretamente com o cristianismo nos primeiros séculos d.C. É uma das matrizes do misticismo e esoterismo na tradição ocidental. Esquecido por séculos, passou a ser objeto de interesse a partir do século XVIII e, especialmente, de alguns anos para cá. Poetas como William Blake e Gérard de Nerval receberam influência direta de ideias e temas do gnosticismo, Fernando Pessoa declarava-se gnóstico. Harold Bloom, em Genius, identifica gnosticismo à própria criação poética: os mais ambiciosos poetas na tradição romântica ocidental, aqueles que fizeram uma religião de sua própria poesia, foram gnósticos, de Shelley e Victor Hugo até William Butler Yeats e Rainer Maria Rilke.


De sua complexa mitologia, destaco o mito do demiurgo, ou melhor, sua versão do mito platônico do demiurgo, da criação do mundo por um “pequeno deus”. No gnosticismo, esse demiurgo, Ialdabaoth, é obtuso, arrogante, cruel. Houve demonização do Jeová bíblico, oferecendo uma evidente metáfora antiautoritária.


Retornemos a Silvio Piresh e Fausta  repetindo que interpretá-la como obra gnóstica é uma das possibilidades de leitura. Mas, com seu Deus serial-killer, é evidente que rebaixa o Criador a demiurgo gnóstico. Em comum com a gênese da doutrina, o bordel onde Simão encontrou Helena:

– Baudelaire: O amor é o gosto
Da prostituição. O amor.
– Fausta: Que é Deus? Prostituição.
– Baudelaire: Todo o gosto.
Não tarda, porém, a corromper-se
Pelo gosto da propriedade.

Com toda justiça, nesta passagem Baudelaire é equiparado a Simão o Mago. Mas, observariam, Simão foi um homem: Silvio Piresh não trocou seu sexo ao criar Fausta? Contudo, em Platão e no gnosticismo, o andrógino, a criatura com dois sexos, símbolo da unidade, da perfeição que precede a Queda, tem valor fundamental.


O mais importante, dentre os possíveis paralelos entre Fausta e “escrituras” gnósticas: serem heterodoxas, sincréticas, promovendo a fusão e combinação de mitos, temas e personagens literários.


Da paródia à blasfêmia: uma das associações de Silvio Piresh pode ser ao Alfred Jarry de César-Antéchrist e de L’Amour absolu, variante herética do relato do nascimento de Jesus Cristo, sugerindo as mais estranhas relações incestuosas com Maria. Sua peça em cinco atos L’autre Alceste, de 1896, é sincretismo como sátira e paródia: pôs em cena, lado a lado, os personagens da mitologia grega, Júpiter e os ciclopes inclusive, e da Bíblia, Salomão, Roboão, a rainha de Sabá, além de outros empréstimos, como o do vizir Assaf, e dos personagens que ele mesmo criou, como Doublemain; e Helena de Tróia. Nöel Arnaud esclarece: Helena não é apenas, para nós, a Helena de Tróia, personificação da Beleza, porém antes a Helena gnóstica imaginada por Simão o Mago.


Algumas observações finais.


Uma delas, que sátira e paródia são modos da ironia, tal como entendida por Octavio Paz em Os Filhos do Barro, ao afirmar que, na poesia moderna, do romantismo até nossos dias, há uma polaridade de analogia e ironia, vistas por ele como instâncias opostas: A ironia é a ferida pela qual sangra a analogia; é a exceção, ao acidente fatal, no duplo sentido do termo: o necessário e o infausto. [...] O universo, diz a ironia, não é uma escrita; se fosse, seus signos seriam incompreensíveis para o homem porque nela não figura a palavra morte, e o homem é mortal. Sendo proclamação da analogia, ao mesmo tempo Fausta é evidentemente irônica. A citação é para lembrar que sátira, paródia, ironia, não equivalem necessariamente a fazer graça.


Finalmente: essa apresentação de pistas para extrair sentido de Fausta  talvez seja secundária. O mais importante é ser uma leitura deliciosa. Além de informar, diverte. Contraposta a certa aridez, a uma atmosfera demasiado rarefeita de obras que se aventuram pelo caminho da literatura sobre literatura, é texto vivo, pulsante, animado. Em Silvio Piresh, neste e em seus livros anteriores, a ironia dá vida à poesia.

(Claudio Willer)

Paz, Octavio, A outra voz, tradução de Wladir Dupont, Editora Siciliano, São Paulo, 1990, pg. 140.
Uma Teoria da Paródia de Linda Hutcheon, Edições 70, Lisboa.
Mais a respeito em minha tese de doutorado em Letras, Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e a poesia moderna,USP, 2008.
Eliade, Mircea, História das Crenças e das Idéias Religiosas; quatro volumes; tradução de Roberto Cortes de Lacerda, Zahar, Rio de Janeiro, 1979, tomo II, vol. 2.
Alexandrian, Sarane, História da Filosofia Oculta, tradução de Carlos Jorge Figueiredo Jorge, Edições 70, Lisboa, s/d.
Bloom, Harold, Poesia e Repressão – O Revisionismo de Blake a Stevens, tradução de Cillu Maia, Imago, Rio de Janeiro, 1994.
Bloom, Harold, Genius – A mosaic of one hundred exemplary creative minds, Warner Books, New York, 2002.
Arnaud, Nöel, Alfred Jarry - d’Ubu roi au Docteur Faustroll, Editions de la Table Ronde, Paris, 1974.
Paz, Octavio, Os Filhos do Barro, tradução de Olga Savary, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1984.